segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Carga, cargo ou serviço público?


Por mais contraditório que pareça, um dos sonhos da sociedade pós-moderna (líquida) é adquirir solidez laboral, por meio da aquisição de uma vaga em um serviço vinculado ao poder público. Essa aspiração na verdade indica, atualmente, que muitos querem somente as vantagens do funcionalismo público, sem necessariamente engajar-se e deter-se na sua essencial missão: servir ao público.

 Essa confusão motivacional é a raíz de muitos sofrimentos dos chamados “funcionários públicos”.
Quando se trabalha a partir de demandas coletivas, o fazer diário exige o surgimento de um sentimento empático, que se antes não desenvolvido, em vivências íntimas, pode acarretar em desastres cotidianos contínuos. Quem usa de um cargo público para satisfazer anseios pessoais e dar as costas para o objeto central de sua tarefa, corre o risco de perder completamente o sentido daquilo que empreende no dia-a-dia.

A dureza das profissões públicas se acentua justamente porque, se o desejo de entrega à alteridade não desabrocha, o servidor fica petrificado e é capturado pelos tentáculos das exigências burocráticas que permeiam suas tarefas. Sem a dimensão subjetiva da pessoa que estamos atendendo, a relação acaba se coisificando, almas tornam-se números e protocolos, ficam destituídos de história e marca própria. Quando não nos envolvemos com esse “público”, julgamos ser perseguidos e engolfados por uma massa amorfa e voraz. Um bando de pessoas que querem meu sangue, que me cansam e fazem meu corpo ficar sem nenhuma energia ao final do dia. E esse meu cansaço não traz nenhuma lembrança de que construí algo, fico com a impressão de que apenas aguentei as pressões inerentes ao meu cargo, que transforma-se, então, em carga pública.   

Isso se dá também pela concepção distorcida que temos da esfera pública, que não privilegia o diálogo e as trocas simbólicas. Ou imponho goela abaixo minhas vontades ou então os “outros” me patrolam com suas marcas identitárias. E esse movimento polarizado gera a alternância de: uma multidão indomável e selvagem que atropela o trabalhador ou um servidor algoz, que, revestido indevidamente do poder público, diz ao cidadão que ele não merece ser cuidado pelas instituições. Geralmente esse servidor também se vê abandonado pelo poder que o sustenta nesse cargo. Reproduz o descuido, por achar que possa ser menos doloroso fazer o trivial. Entretanto, não compreende como sua angústia não pára de crescer.

Servidor que se nega a servir sofre demais. A estabilidade financeira não compensa o descontrole emocional e funcional, pois com essa postura pouco receptiva sempre se processará uma fuga frustrada da tarefa, que por sua própria construção, se torna um fardo quase impossível de executar.

Quando as pessoas têm brilho e nos afetam, o serviço público torna-se extremamente gratificante, pois nos permite experienciar de forma viva a efervescência coletiva, nos trazendo a dimensão de que podemos mudar realidades através das nossas práticas. Podemos inscrever em nossas subjetividades a ideia de que é possível alterar situações de miséria e opressão vividas diariamente, melhorando a vida das comunidades. De alguma forma nos conectamos com algo maior que nós, e isso nos causa um profundo bem estar.

Parabéns aos servidores que conseguiram, em algum momento, alcançar essa dimensão em suas ações. E aos que não a encontraram...redirecionem suas intenções nesse papel ou busquem outro tipo de atuação, para não adoecerem ainda mais.

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