Por mais contraditório que
pareça, um dos sonhos da sociedade pós-moderna (líquida) é adquirir solidez
laboral, por meio da aquisição de uma vaga em um serviço vinculado ao poder
público. Essa aspiração na verdade indica, atualmente, que muitos querem
somente as vantagens do funcionalismo público, sem necessariamente engajar-se e
deter-se na sua essencial missão: servir ao público.
Essa confusão motivacional é a raíz de muitos
sofrimentos dos chamados “funcionários públicos”.
Quando se trabalha a partir de
demandas coletivas, o fazer diário exige o surgimento de um sentimento
empático, que se antes não desenvolvido, em vivências íntimas, pode acarretar
em desastres cotidianos contínuos. Quem usa de um cargo público para satisfazer
anseios pessoais e dar as costas para o objeto central de sua tarefa, corre o
risco de perder completamente o sentido daquilo que empreende no dia-a-dia.
A dureza das profissões públicas
se acentua justamente porque, se o desejo de entrega à alteridade não
desabrocha, o servidor fica petrificado e é capturado pelos tentáculos das
exigências burocráticas que permeiam suas tarefas. Sem a dimensão subjetiva da
pessoa que estamos atendendo, a relação acaba se coisificando, almas tornam-se
números e protocolos, ficam destituídos de história e marca própria. Quando não
nos envolvemos com esse “público”, julgamos ser perseguidos e engolfados por
uma massa amorfa e voraz. Um bando de pessoas que querem meu sangue, que me
cansam e fazem meu corpo ficar sem nenhuma energia ao final do dia. E esse meu
cansaço não traz nenhuma lembrança de que construí algo, fico com a impressão
de que apenas aguentei as pressões inerentes ao meu cargo, que transforma-se,
então, em carga pública.
Isso se dá também pela concepção
distorcida que temos da esfera pública, que não privilegia o diálogo e as
trocas simbólicas. Ou imponho goela abaixo minhas vontades ou então os “outros”
me patrolam com suas marcas identitárias. E esse movimento polarizado gera a
alternância de: uma multidão indomável e selvagem que atropela o trabalhador ou
um servidor algoz, que, revestido indevidamente do poder público, diz ao
cidadão que ele não merece ser cuidado pelas instituições. Geralmente esse
servidor também se vê abandonado pelo poder que o sustenta nesse cargo. Reproduz
o descuido, por achar que possa ser menos doloroso fazer o trivial. Entretanto,
não compreende como sua angústia não pára de crescer.
Servidor que se nega a servir
sofre demais. A estabilidade financeira não compensa o descontrole emocional e
funcional, pois com essa postura pouco receptiva sempre se processará uma fuga
frustrada da tarefa, que por sua própria construção, se torna um fardo quase
impossível de executar.
Quando as pessoas têm brilho e
nos afetam, o serviço público torna-se extremamente gratificante, pois nos
permite experienciar de forma viva a efervescência coletiva, nos trazendo a
dimensão de que podemos mudar realidades através das nossas práticas. Podemos
inscrever em nossas subjetividades a ideia de que é possível alterar situações
de miséria e opressão vividas diariamente, melhorando a vida das comunidades.
De alguma forma nos conectamos com algo maior que nós, e isso nos causa um
profundo bem estar.
Parabéns aos servidores que
conseguiram, em algum momento, alcançar essa dimensão em suas ações. E aos que
não a encontraram...redirecionem suas intenções nesse papel ou busquem outro
tipo de atuação, para não adoecerem ainda mais.